domingo, 13 de fevereiro de 2011

Para o amor que eu nunca tive

Para o amor que eu nunca tive

Faz muito frio em Annecy nos meses de dezembro e janeiro. É a época do ano em que recebemos mais visitantes na pequena La Sagesse. Um nome um pouco óbvio para uma livraria-café. Foi você quem escolheu, quando escutávamos pela milésima vez a música de Marc Streitenfeld que eu te apresentei poucos meses depois de nos conhecermos. Wisdom virou a trilha sonora do nosso amor, traduzido ao pé da letra para o francês, em letra itálica, na porta da nossa librairie. Já o nosso final feliz foi resultado de muito mais renúncias do que Russell Crowe precisou fazer em “A Good Year”.

Neste momento você está inventando uma modalidade nova de chocolate quente. Há anos você tenta traduzir a minha personalidade em um aroma, do mesmo jeito que Juliete Binoche fez em Chocolat. Enquanto separa os ingredientes, você discute Tolstói com nosso vizinho inglês, John Dixon, que você taxa de “presque anarchiste” (quase anarquista), já que ele vive entrando em contradição com suas próprias filosofias políticas. John tem o hábito de falar em inglês quando fica muito exaltado e eu adoro seu sotaque quando grita: “Seulement en français, John. Seulement en français”.

De Tolstói, Anna Karenina faz parte de uma das minhas mais doces recordações. Não falo do romance, mas de uma das vinte bonecas de porcelana que pertenciam à minha estimada coleção. De todas, a boneca caracterizada como Anna Karenina era a favorita da nossa filha, Amanda, que herdou toda a coleção como presente no seu aniversário de dez anos. Lembro-me, como se fosse hoje, dos seus olhinhos brilhando enquanto brincava com a pequena daminha, que ela chamava erroneamente de Ana Catarina.

Nossos filhos cresceram, casaram, tiveram filhos e construíram suas vidas. Deixá-los no Brasil foi um rompimento doloroso, e escolher não ter mais contato com eles foi a decisão mais extravagante e insólita que um casal de idosos, como nós, poderia ter.

Quando jovens decidimos que assim que ficássemos bem velhinhos faríamos uma festa de velório para nós mesmos. Que assim que víssemos nossos filhos seguros e com suas vidas feitas, nos despediríamos de todos e deixaríamos para eles apenas as nossas melhores lembranças. Fugiríamos juntos para uma cidadezinha camponesa no sul da França, abriríamos uma livraria-café e viveríamos dela até o final das nossas vidas.

Nossos amigos brasileiros disseram várias coisas a respeito: que seria impossível fugirmos, que nos descobririam, que a decisão era egoísta, que éramos velhos esclerosados. No entanto, ninguém nos descobriu até hoje. Nossos filhos prometeram não nos procurar nem tentar ter notícias ao nosso respeito. Ninguém soube para onde iríamos. Nosso enterro aconteceu numa linda festa de despedida, onde reunimos todos aqueles que nos amavam e dissemos adeus. O nosso túmulo tornou-se, para sempre, o baú de memórias guardado no coração de nossos filhos.

De repente, uma lágrima desce dos meus olhos. Toda a nossa história se passa pela minha cabeça como um flashback de filme. Você percebe, de longe, o meu aspecto soturno, e vem ao meu encontro, deixando John falando sozinho. Ninguém me conhece melhor do que você. Você beija suavemente os meus cabelos e diz: - La décision n'était pas la vôtre, mon amour.

Você sempre soube exatamente o que dizer para me fazer sentir melhor. Não, a decisão de vir pra cá não foi só minha. E eu não queria estar em outro lugar hoje a não ser aqui ao seu lado, ma chère.

Você limpa meus olhos com seu guardanapo sujo de chocolate e traz do bar uma xícara cheia: - Experimente e me diga o que vem na sua mente.

Eu dou um pequeno gole e respondo, sem pensar duas vezes, fitando seus olhos: - Intense.

2 comentários:

  1. É, Chamon, a vida acontece enquanto a gente sonha.

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  2. Alineadoroseunome, não haveria dia melhor para postar esse conto.
    O Dia dos Namorados ou Dia de São Valentim.
    =oD

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